segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Márcia Tiburi - Magnólia

            Dimas Macedo
 
 
               Como não sou um teórico da cultura nem estudioso da filosofia da linguagem, creio que não posso falar de Marcia Tiburi enquanto ensaísta e pensadora. Sei que se trata de uma mente poderosa, de uma personalidade inquieta e fascinante e de uma romancista que é “uma absoluta novidade em nossa ficção”.

             Assim, nesta resenha breve sobre a sua estreia na literatura, fico tão-somente com os valores simbólicos do seu texto, com a estética da sua escritura inquietante, com os acertos e achados da sua construção estilística e com a semântica madura da sua ficção assustadora. 

              O sopro novo da inventividade está no seu texto como em nenhum outro momento da literatura brasileira. Ela é o que se pode chamar de uma romancista pós-moderna, pois sabe que a ordem e os sentidos paradigmáticos da modernidade perderam o seu lugar entre os empreendimentos da cultura.

              Desde a construção poética de Rimbaud e Baudelaire, passando pelas ousadias formais de Joyce e de Cortázar, pelo refinamento estético da poesia de tradição moderna, a literatura tem sido o estuário, a fusão e a síntese de todos os signos da cultura. Recuperou, portanto, o seu lugar na tradição e é por isto que no século vinte sempre caminhou em compasso de vanguarda.

              Corajosa, pois, a decisão de uma filósofa – justamente uma filósofa sutil e poderosa – de assumir o seu lugar na arte literária, quando, no geral, na história da cultura tem-se visto justamente o contrário. De plano, todo pensador que se preza é sempre um escritor poderoso, ainda que não seja, necessariamente, um arquiteto do campo literário. A literatura, de forma induvidosa, é feita predominantemente com palavras, assim como a filosofia faz-se majoritariamente com ideias.

              No plano do conhecimento, talvez com a exceção honrosa de Platão, que fundiu, maravilhosamente, a literatura com a filosofia, é essa a tendência que se tem observado sem maiores esforços.

            Às vezes as palavras não se bastam ao campo literário, ainda que a metáfora, a fábula e a parábola se prestem a remarcar este campo privilegiado da escrita. E, porque a palavra às vezes não se basta a explicar o mundo, é que o símbolo é um recurso que os escritores de talento sempre utilizam, valendo-se, no geral, da linguagem, que é um território sempre a explorar. E é com o recurso a uma forma nova e a uma linguagem plural e sedutora que Marcia Tiburi se dá ao trabalho de ourives nessa sua belíssima Magnolia (Rio, Bertrand Brasil, 2005).

             O que esse seu romance compreende? Não sei. Ainda porque saber é nomear. E nomear é desdizer os segredos do texto literário. Existem suposições tão-somente do que seja essa ficção espantosa e socrática. Romance? Poema? Ensaio ficcional? Aventura metalinguística? Ou uma história que se conta por si mesma a partir de fatos e segredos que precisam ser desvendados?

             O que posso assegurar é que Magnolia é um romance uno e plural a um só tempo. Um romance que se faz com o que existe de mais radical e profundo na engenharia do ser. É também sinônimo de busca rigorosa, que se faz por imposição da palavra e do delírio imaginativo.

               Paulo Bentancur, que escreveu a quarta-capa do livro, assegura-nos que “De suas páginas brota uma flor: a palavra a serviço da melhor literatura, aquela que nos desampara e que, ao mesmo tempo, nos dá uma nova face, a florescer em meio ao que já não podemos identificar como floresta ou deserto”. 

              Apesar de podermos fazer suposições sobre o enredo da história, “montada passo a passo, fato a fato, em torno de segredos discretos e aparentes evidências”, tenho para mim que a falta de enredo é um dos achados magistrais dessa novela curiosa.

              Para invocar aqui uma expressão de Cortázar, eu diria que Magnolia é um modelo para armar. Um livro, portanto, que não segue o figurino ou o sistema da moda, mas que dita a forma e o sentido de um novo signo: estético, artístico e ontológico, pois o ser Magnolia é uma aura a iluminar a visão de mundo do leitor. Um labirinto de espelhos ou um espelho d’água a refletir a nossa dimensão afetiva. 

             Talvez fosse possível dizer que a partir de uma ruptura dolorosa é que se dá a abertura das gavetas da protagonista, que simboliza a abertura das gavetas de cada um de nós. Aliás, como assegura Fabrício Carpinejar, num texto de muita lucidez que repousa nas orelhas do livro, “neste romance estranho, fantástico e pessoal de Marcia Tiburi, limpar as gavetas é o detonar de uma crise sem volta”. E é. Uma crise que leva também o leitor à exaustão e ao reencontro maduro com sua identidade.

             Nas orelhas do romance, existe uma alusão de que o livro, a partir da conformação e do sofrimento interior das personagens – a anônima Magnolia e o desenhista André –, faz a evocação das tragédias gregas. Não duvido. E acrescento, ademais, que o sentido essencial de Magnolia é a cosmovisão de todo o sofrimento imposto pela cultura pós-moderna: o mal-estar, o dilaceramento do sujeito, a fragmentação da esperança, o esgotamento de todas as energias corporais que cedem lugar à coisificação do afeto e ao fetiche da mercadoria.

            O romance, do ponto de vista da psicanálise, talvez possa ser visto como um documento gestáltico. Desconhecer, no entanto, a sua contestação frontal à normose ou à paranoia da normalidade seria tão imaturo quanto desconhecer que este romance é uma aventura com a linguagem, que não se satisfaz apenas com o recurso da palavra e que faz de um signo da cultura, do nome de uma flor e da sua beleza um enigma que nunca se decifra.

             O que se pode dizer de Magnolia, no mínimo, é que se trata de um livro instigante. Livro em que os nomes e os seres “fecundam-se mutuamente à espera de realidades que ainda não nasceram”. Livro germinal e visceral, portanto, no qual cada frase e cada som integram as partituras de uma sinfonia, a repartir e a juntar espaços e destinos, alucinações e fragmentos, desejos e sentimentos irrealizados.

             Não tenho nenhuma dúvida em afirmar que, na literatura brasileira, não existe paralelo que se possa contrapor a este romance-desafio. No cerne profundo do seu texto, parece-me oportuno observar o embate entre uma língua plural que se afirma e a realidade que se furta constantemente à nomeação. Também acho justo destacar o ritmo poético que, em Magnolia, precede e ordena os seus diversos extratos narrativos, resultando de tudo uma refinadíssima linguagem literária que a todos encanta e contagia.

             A montagem do texto é exemplar em Magnolia, assim como exemplar é o conhecimento filosófico que se desprende do seu enunciado. Sentenças, verdades imortais em frases lapidadas, tempo circular, claridade, manhã, noite, tarde, luz, escuridão. Fatos, talvez em demasia. Ou ainda a completa anulação de Magnolia entre o peso de uma dívida, cujo pagamento sempre se adia, e a alucinação a partir do terror noturno da insônia.

               Um enigma atravessa e recorta as páginas do romance: o voo dos insetos. Se, na história, povoam o entorno da protagonista, no livro, eles voam diante dos olhos do leitor, enriquecem o projeto gráfico do volume e harmonizam a belíssima e irrepreensível capa do romance, um dos melhores objetos gráficos editados de último no Brasil.

             A obra de arte literária quando se desprende do íntimo do autor é superior ao engenho e à vontade de quem a empreende. E é autônoma em relação ao tempo e ao espaço da sua produção. Daí não ter importância as referências a aspectos biográficos de uma escritora de talento quanto Marcia Tiburi. 

              Pede-me, no entanto, o ritual do discurso que lhes apresente também a autora. Acho que não devo. Digo tão-somente que Marcia Tiburi, para além das imagens, palavras e recortes cênicos que estamos acostumados a assistir em programas de TV - como Saia Justa (da GNT) e A Bela e a Fera (da TV Futura/Unisinos) -, é uma das principais filósofas do Brasil. 

             Márcia é professora de filosofia, com doutorado e tese neste campo de pesquisa sobre a obra de Theodor Adorno. É natural do Rio Grande do Sul. Divide-se entre São Paulo e Porto Alegre. É artista plástica com graduação nessa área e é autora, entre outros, dos seguintes livros: Crítica da Razão e Mímesis no Pensamento de Theodor Adorno (1995), Uma Outra História da Razão (2003) e Filosofia Cinza – A Melancolia (2004).



           Um repasse tão-só dos títulos referidos mostra-nos para onde a autora conduz a sua filosofia combatente: para as águas maduras das interrogações e do sofrimento psíquico do sujeito, em contraposição à filosofia orgânica e tradicional, de ordem espiritual, material ou cosmológica. A filosofia, portanto, da radicalidade e dos signos culturais cambiantes, que aponta para o legado de Nietzsche e da psicanálise e para o niilismo institucional e acadêmico.

             Magnolia é sua estreia na literatura e abre o que a autora denominou de “trilogia íntima”. Marca, assim, o início de uma carreira literária que já nasceu vitoriosa. Trata-se de um livro que se impõe pela sua expressão e pelos seus valores e cuja leitura eu recomendo como um dos momentos de melhor criação e pesquisa de vanguarda que se tem editado no Brasil. Nele, a estética e a semântica de língua portuguesa assumem, definitivamente, o seu lugar nos escaninhos da arte literária.

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