As
verdades conhecidas são uma grande montanha de destroços. Nada existe além das
aparências. Somente o mistério reluz nos escaninhos da alma. A lucidez é o soro
com o qual injetamos em nós a incerteza. E é certo que morremos enquanto
acreditamos no credo social, nas convenções e mentiras no poder e nas tiranias
e valores do capital.
Pensei que não fosse morrer tão
cedo e da maneira como estou morrendo: sufocado pela minha agonia e pela
cegueira com que minha mulher se veste com suas ilusões e com as suas roupas e
sapatos, que escondem a sua prepotência e que não denunciam a extinção da vida
que se vai arruinando em seu sangue.
Se pudesse, eu a mataria por
asfixia, envolvida pelos seus lençóis que já não abrigam o meu corpo faminto, a
minha necessidade de sexo, os meus orgasmos sufocados, a minha alegria de
berrar feito um menino que não tem consolo e que chora com a sequidão dos seus
afluentes.
Que vida me está sendo ofertada
pela morte, que silêncio profundo em meu esconderijo, que sufoco se planta na
minha sobrevida! As crianças boiando no rio da infância, e a infância boiando
em uma caixa fechada, da qual só exalavam a morte do meu pai e o bulício do
sexo na porta do armário, lá onde o sol costumava se pôr e o gado de Zé Lobo
morria.
Quantos espiões eu matei nas margens
do Salgado, quantas traições tiraram a vida do meu pai, quantos canoeiros
atravessaram o Riacho da Extrema e foram tragados pelo medo, quantas mulheres
jogaram as suas roupas de cima da barragem e das pedras que cortavam a serra, e
da terra seca que mugia?
Eis um pouco das perguntas que
venho fazendo nessa idade madura da tristeza, depois que aprendi que viver não
faz nenhum sentido, depois que Fuentes publicou Federico em sua Sacada e morreu sufocado pelas suas crises e pelos
saques que lhes foram feitos, para que nunca recebesse as coroas que os seus
leitores queriam lhe ofertar na sepultura.
Pobre esse destino de ser um
escritor esquecido, pobre essa república de merda que quer fazer de nós uns
imbecis e nos sufocar com as suas promessas de grandeza, quando aquilo que nos
resta é apenas o sufoco e a resiliência e a falta de pudor dos nossos
dirigentes, que não fazem aquilo que deviam, amarrando o povo com as suas
mentiras e com as ilusões da ideologia.
O que é o social, me perguntam. E
eu respondo que o social é fumaça, que os pobres são os excrementos e que a
carne daqueles que não estão no poder é o alimento da elite que governa o
Brasil, que põe seus ossos de serpente, que maquia o rosto da pobreza e que
corrompe o sol da juventude.
Existe futuro no Brasil, ou o
nosso País é uma pequena colônia de banqueiros? Eis uma pergunta que cala nos
recessos da alma. Por que se mente tanto nessa Nação de nanicos e por que eu
tenho que escrever desta forma para não morrer sozinho, preso entre as paredes
do armário?
Eis o enredo dos meus dias, eis
a minha verdade absoluta, eis a minha dor guardada na gaveta, depois que a vida
se finou e levou consigo seus mistérios, depois que a morte fixou no meu ser a sua
lâmina, costurando com sangue a minha desvalia.
Teria a minha história algum
prazer a ser relembrado? Teria a minha vida algum sentido a não ser a morte e a
loucura? Teria eu morrido quando ainda era uma criança, e a minha mãe, uma gota
de sexo em minha língua?
Um drama seria responder a
todas as perguntas que se abalam em meu busto, sufocando a claridão do meu
peito, fazendo pulsar a minha língua, arrancando de mim a minha última sacada e
triturando os meus ossos com esse jorro de esperma, essa chuva colossal que me
deixa sem forças, esse turbilhão de desejos que tenho que provar toda manhã.
Sei que o céu irá desabar
sobre a minha roupa, que a morte me prende com seus guizos, que a lâmina de uma
porta irá descer sobre a minha cabeça e que o corpo da amada será o meu novo
refrigério e que irei adorar a estrela estampada na parede, para sorver a
linhaça dos seus dedos e o esmalte que escorrega pela minha garganta.
Eis o que sorvo quando estou
sozinho: a companhia das estrelas, o calcanhar de Medusa me pedindo o último
suspiro do orgasmo, o gosto angelical com que desço da cama depois de uma noite
de orgia, completamente tomado pelo medo e tentando sair do meu silêncio pela
última porta.
É certo que não tenho medo da
prisão e que a minha fala é quase uma linguagem que me deixa preso. Minha
solidão, ao que penso, não seria igual a solidão de ninguém. Sou absoluto e
individual e é certo que apenas me assemelho com a morte, e que a morte do meu
corpo é o sexo, e que mastigo o sexo da amada como se fosse a asa de um anjo.
Terei resposta para a minha
vida, ou serei assim como Clarice, ou tão misterioso quanto Kafka, ou meio
genial, assim como Karl Marx? Não, não acredito que Judas tenha traído seu
irmão, nem que Buda tenha existido de verdade. A ilusão é o sal de que preciso
para continuar escrevendo, e a morte é a primeira de todas minhas lembranças.
Em Lavras, deixei meu umbigo
enterrado na porteira; na França, fiz um pacto de amor com Beauvoir; e na
China, levei Marguerite Duras para a cama, para sentir essa doença da morte que
lhe deu a glória literária. Mas em todas o que vi, foi a chama do amor jorrando
nas artérias, foi o pulso de Deus em meu pescoço.
Como posso dizer que não morri,
sendo eu o poeta que sou, sendo eu esse leitor voraz e compulsivo, sendo eu
essa esfinge de pó e de ternura que se entranha nos recessos do corpo e que
vive da morte dos seus personagens?
Serei proprietário da língua? A
Literatura será meu alimento daqui a uma década? Quando, afinal, morrerei para
o mundo e ressuscitarei em uma casca de noz? Quando serei batizado no pó da
solidão, e quando não mais serei aquilo que já fui e que não serve de esterço aos
currais de gado do Nordeste?
A vida toda que vivi não vale
uma página sequer de todos os meus livros. Não os escrevi para glória, mas para
serem esquecidos após a minha morte, pois deles o que guardo é o cheiro do sexo
que ali pratiquei, escondendo entre eles os fulgores da minha libido e o pote
de sangue e de esperma que jorrou do meu corpo desde a minha infância
solitária.